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Cidade Invisível: É possível corrigir a falta de representatividade na 2ª temporada? [ENTREVISTA]

A Rolling Stone Brasil conversou com a ativista Alice Pataxó e a socióloga Avelin Buniacá para entender as problemáticas da série e as possibilidades de reparação nos novos episódios

No dia 5 de fevereiro, a Netflix lançou a série Cidade Invisível, uma produção brasileira com a proposta de retratar crenças indígenas nos tempos atuais por meio de um suspense policial ambientado no Rio de Janeiro. Criada pelo indicado ao Oscar Carlos Saldanha (Rio), o seriado conta com Marco Pigossi, Alessandra Negrini e Fábio Lago no elenco.

Na trama, o policial ambiental Eric deseja investigar a misteriosa morte da esposa dele, Gabriela (Julia Konrad). Conforme tenta conectar pistas soltas, Eric se envolve com o Boto Cor-de-Rosa, Iara, Cuca, Saci-Pererê, Curupira e Tutu Marambá, os quais mostram que as lendas são reais e sobrevivem em meio à modernidade cética.

Não demorou muito para a série ganhar popularidade e entrar para o Top 10 da plataforma de streaming no Brasil. De acordo com o Notícias da TV, a série alcançou o mesmo nível de sucesso em mais de 40 países.

Contudo, da mesma forma que Cidade Invisível ganhou elogios por investir em uma narrativa sobre a cultura indígena, a série atraiu críticas pela ausência de atores e profissionais indígenas na produção – além da distorção e folclorização das crenças.

Apesar das críticas, a plataforma de streaming confirmou a produção da segunda temporada da série e, segundo o Notícias da TV, o diretor afirmou em nota oficial que leu “bastante sobre o que as pessoas desejam para a continuação” e está “levando tudo em consideração para trazer ao público uma sequência bacana.”

Diante desta declaração, surge uma questão inevitável: É possível corrigir os erros da primeira temporada? Para descobrir a resposta desta pergunta, a Rolling Stone Brasil conversou com Alice Pataxó, ativista, comunicadora e colaboradora do projeto jornalístico Colabora, e Avelin Buniacá, socióloga, professora, especialista em gestão de políticas públicas em gênero e raça e coordenadora do Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas.

Distorção das crenças

Primeiro, é preciso entender quais são as principais problemáticas da série. Ao longo de sete episódios, o espectador conhece a história de origem das chamadas entidades, que ganharam habilidades especiais após viverem eventos fatais e traumáticos. Contudo, a produção comete deslizes ao retratar algumas figuras tradicionais, como a Iara, o Curupira e o Boto Cor-de-Rosa.

Antes de entender a distorção dessas histórias, vale lembrar que as crenças abordadas não pertencem a um único povo indígena, afinal, existe uma grande variedade étnica no Brasil, como apontou Alice. Além disso, é importante ressaltar que algumas crenças também estão presentes na cultura ribeirinha – a qual é retratada pela Vila Toré em Cidade Invisível.

Para a ativista, a história do Curupira foi um dos arcos que chamou atenção dela na série. “O Curupira, eu vejo de um jeito muito diferente. Para nós [pataxós] é uma entidade muito de paz,” disse Alice sobre o anti-herói, que, no seriado, deixa a floresta para se isolar em uma ocupação e se entorpecer com bebidas alcoólicas.

A apresentação de Iara também veio acompanhada de equívocos. Avelin explicou que a série passa a impressão de que a sereia Camila é a mãe d’água Iara, contudo, esta entidade capaz de gerar vida é tradicionalmente da água doce. No seriado, ela é vista nas águas do mar.

“Acho que há uma distorção grande em relação à sereia [Camila] e à mãe d’água Iara. Eles colocam como se fosse a mesma coisa e não é. A gente sabe que a mãe d’água tem uma diferença de relação com a água doce e com a água salgada.”

“Vai para além da questão de apropriação cultural e vai para uma violência de gênero sendo reforçada.” – Avelin Buniacá

Boto Cor-de-Rosa, por sua vez, é retratado como um homem branco que seduz mulheres indígenas e ribeirinhas – uma das adaptações mais fiéis da série, segundo Alice. Porém, Avelin acredita que a produção poderia ter ido além da lenda para trazer uma discussão importantíssima de gênero.

A socióloga disse que quando mulheres eram vítimas de abusos sexuais, muitas vezes, cometidos pelos próprios parentes ou pessoas próximas, o Boto surgia e era culpado pelo crime cometido. Mas, na série, o personagem é um homem charmoso, querido pelas outras entidades e disposto a ajudar o policial Eric.

“O Boto a gente sabe que é uma lenda indígena. Não só indígena, mas como ribeirinha também. Ela vem para encobrir uma violência de gênero gravíssima, então não pode ser romantizado daquela forma. Vai para além da questão de apropriação cultural e vai para uma violência de gênero sendo reforçada.”

Impacto no exterior

O grande sucesso de Cidade Invisível também traz consequências negativas. Avelin lembra que a série, como uma obra de ficção, possui licença poética para adaptar histórias e criar arcos dramáticos, porém, em um cenário em que os povos indígenas são invisibilizados, a distorção das lendas não é clara e corre o risco de ser levada como verdade, especialmente em outros países.

“Eu acho perigoso quando as pessoas fecham os ouvidos para outras narrativas, então, olha, se você assistiu Cidade Invisível e toma isso com 100% de verdade, como uma verdade dos nossos povos, é complicado […] Acho complicado e perigoso, porque reforça um apagamento histórico e nos coloca nesse lugar sincrético.”

A socióloga continuou: “Eu acredito que se nós, indígenas, pudéssemos contar a história da mãe d’água, pudéssemos contar a história do Saci enquanto uma entidade indígena, um encantado indígena, pudéssemos contar essa história do Boto denunciando a violência de gênero da forma que aprendemos, a gente não precisaria estar desconstruindo isso hoje.”

“A gente está ensinando outros países a pensarem do mesmo jeito.” – Alice Pataxó

Da mesma forma, Alice compara a visão estereotipada do índio no Brasil com a visão estigmatizada do Brasil que ainda se propaga ao redor do mundo.

“Se você não se sente confortável com isso, por que você se sente confortável em reduzir a capacidade do indígena e simplesmente apagar a existência dele?,” questiona a ativista. “Eu vejo isso de uma maneira muito problemática, porque não é só o Brasil que pensa dessa maneira. A gente está ensinando outros países a pensarem do mesmo jeito.”

Segunda temporada

Alice espera que as críticas ajudem a evitar novos erros na produção, mas também deixa claro que a falta de representatividade não é um problema exclusivo da Netflix e não é preciso sustentar uma “guerra eterna” contra a plataforma de streaming ou os atores do seriado, pois esta é uma questão simples de ser resolvida.

“[Espero] que entendam que é muito importante levar para produção, levar pra dentro dessa história, o protagonismo indígena,” disse Alice. “Se a gente está falando de história indígenas de tal povo, que a gente não faça uma pesquisa de Wikipédia […] Não é por falta de conhecimento ou por distanciamento dessas pessoas, porque elas existem, elas estão aí e elas também querem essa oportunidade. Seria muito interessante a Netflix e toda produção pensar nisso.”

Por fim, Avelin confessou que não acredita que a plataforma de streaming consertará as falhas apresentadas, pois trazer atores indígenas implicaria em uma grande mudança de narrativa. E, caso a plataforma incorpore artistas indígenas no elenco, mas mantenha a trama apresentada, o problema seria ainda maior.

“Se eles contratarem pessoas indígenas para poderem suprir esse buraco, pelo menos no sentido de uma reparação, mas se continuarem contando a mesma história vai ser pior, porque você vai ter pessoas indígenas legitimando uma distorção.”

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