Quando o filme Entrevista com o Vampiro ganhou o mundo, em 1994, a “febre” das criaturas bebedoras de sangue – que teve uma estranha ascensão com a Saga Crepúsculo – estava muito distante. E o título de “estranha” aqui é uma constatação apenas. De tudo que ronda a história daqueles adolescentes, o vampirismo é a menos relevante delas. Mas, em 1994, as referências eram outras e o filme dirigido por Neil Jordan usou com genialidade as figuras icônicas de Tom Cruise e Brad Pitt para tornar Lestat e Louis dois ícones do mundo contemporâneo. De quebra, ainda apresentou aquela que se tornou a mitologia vampírica mais inteligente e profana da história da literatura.
Embora até 1976 (quando o livro foi publicado), tenha havido algumas tentativas de revirar o que foi estabelecido por Bram Stoker, em Drácula, nada foi realmente bem sucedido. De certa forma, a criatura selvagem criada pelo escritor em 1897 acabou sendo replicada no gênero do horror como ferramenta para o gore. No próprio livro de Bram, a figura de Drácula se distancia do leitor e não há nenhum investimento na figura dele enquanto criatura pensante. Ele é um predador, nada mais. Drácula é e sempre será um clássico, mas a ideia do vampiro como conhecemos hoje não foi influenciada só por ele.
Em 1973, depois de um ano de luto pela morte da filha, Anne Rice escreveu no espaço de poucos dias aquele que seria o livro mais importante de sua carreira. Entrevista com o Vampiro só foi publicado em 1976 (depois de muitas recusas), mas deixou a crítica especializada em choque. O vampirismo era apresentado sob uma perspectiva humana e tinha uma alta carga homoerótica. Com muito hedonismo e uma linguagem gótica que romantizava o lado mais obscuro da existência, Anne criou Lestat e Louis em torno de Claudia, a menina-vampiro que era uma evidente licença para a perda que a escritora experimentava naquela década.
Na história, o jornalista Daniel ouve o relato do milenar vampiro Louis, que foi transformado por Lestat em 1791, com 24 anos de idade. O que o leitor não espera é que o relato vá revelar uma consciência humana por detrás do ato abominável de se matar para beber sangue. O grande impacto de Entrevista com o Vampiro é existencial. Louis não se conforma com seu novo estado e ouvimos, atônitos, a descrição de uma vida de conflitos entre a sede e a culpa. Ele não está mais “vivo”, mas sofre diariamente – e eternamente – as dores emocionais de um ser humano comum. Assim, apesar da violência com que se alimenta, Louis é melancólico, triste, miserável.
A Verdade Sobre as Criaturas da Noite
A abordagem de Anne para a mitologia original também atravessou fronteiras. Bram Stoker estabeleceu algumas regras que passaram muitos anos em vigência: quem era mordido incessantemente por um vampiro morria e voltava como um. Cruzes, alho, presas como as de um animal, tudo isso foi registrado pelo escritor. Mas, disso tudo, Anne só manteve uma coisa : a sensibilidade à luz do sol. A noção de que um vampiro automaticamente transformaria uma pessoa quando mordesse sempre foi ingênua, já que por serem imortais, eles passariam a eternidade transformando um número absurdo de pessoas. Sabendo disso, Anne estabeleceu que ser um vampiro era um “dom” e que para merecer se tornar um, a vítima precisava cumprir certos requisitos.
Assim, as experiências hedonistas, o culto à beleza e o homoerotismo ilustravam a linhagem de vampiros que começaram a ser transformados ainda no início da civilização. Para que um vampiro transformasse uma pessoa, ela tinha que ser sugada até o limiar da morte. Depois, o vampiro dava o próprio sangue para a vítima e ela passava por uma espécie de “morte” física: muitas dores por alguns segundos e uma transformação permanente no corpo. Os dentes se afiavam e a pele adquiria um tom pálido. Nada de presas sumindo e aparecendo. A transformação era permanente, mas sutil o suficiente para que as criaturas andassem livremente à noite. Nada de funções corporais básicas também. Os vampiros de Anne não comem, não respiram e não tem funções sexuais (o que é óbvio, já que o corpo morreu e eles se mantêm animados por razões que só em A Rainha dos Condenados veríamos reveladas).
O mais importante é que apesar da sede brutal, eles ainda têm consciência e vão tropeçando para lidar com essa existência dúbia. Eles se apaixonam, se envolvem, tudo com aquela paixão dramática do romantismo e com a urgência e dor descritas em melodia gótica. Alguns puderam escolher se queriam ou não o “dom da noite”. Lestat, que a partir do segundo livro se tornou o protagonista, não teve escolha. E essa amargura da eternidade impositiva também atormenta alguns deles, que, mesmo sendo capazes de atravessar a eternidade, são mortais e vivem o luto do mesmo jeito que qualquer um de nós. Tudo na boca deles é lúdico, artístico, sensual… e cruel na mesma medida.
Crônicas
assaram-se vários anos até que o filme de Neil Jordan acontecesse. Anne Rice, na época, foi contra a escalação de Tom Cruise. Mas, depois de ver a forma assombrosa com a qual o ator encarnou Lestat, mudou de ideia. O trabalho de Tom e Brad Pitt estabeleceu uma marca importante: as crônicas tinham sido reveladas para o mundo. Em 1994 (quando o filme saiu), Anne estava indo para o quinto livro (de uma série que chegou até o livro número 13, em 2018). As Crônicas Vampirescas também eram metalinguísticas e existiam dentro do próprio universo. Lestat e sua figura misteriosa, caminhando pelas ruas de Nova Orleans, crescia até o status de estrela dentro e fora das páginas. A extrema ligação entre as tramas, contudo, também sempre foi um empecilho para mais adaptações.
Em 2002 o diretor Michael Rymer lançou A Rainha dos Condenados, que fez um samba na trama do livro. Na cronologia ele é o terceiro livro; e é o mais importante, já que é nele que descobrimos como os vampiros foram criados, numa das narrativas mais poderosas da autora e que merecia um dia chegar até às telas do cinema. O filme, contudo, não conta essa trama e atravessa o mundo moderno com um Lestat correto, mas com uma dramaturgia excessivamente desconexa. Com o resultado questionável, Hollywood abandonou a franquia.
A própria Anne, um ano depois, também renunciou. Após a morte do marido, ela decidiu parar de escrever sobre vampiros e lançou aquela que seria, até então, a última crônica. Cântico de Sangue (2003) encerra as aventuras de Lestat de um jeito trôpego, com o personagem refletindo a conversão absoluta de Anne para o cristianismo. Por 10 anos ela se dedicou a escrever sobre anjos e sobre Jesus. Até que em 2013 voltou atrás, abandonou a igreja católica e retomou as crônicas. A trilogia O Príncipe Lestat é explosiva, com todos de volta numa trama complexa e nervosa, que resitua os personagens e leva a mitologia até lugares nunca antes imaginados. Para alguns fãs, ousada até além da conta.
Infelizmente, Anne nos deixou sem ver ir ao ar a esperada série que ela e o filho desenvolviam há anos (e que vivia pulando de um canal para o outro). Atualmente, o AMC detém o título e já havia prometido que a produção sairia finalmente no papel. Seria uma nova chance de reapresentar suas criaturas da noite ao público do streaming e dar à elas o tratamento que só Neil Jordan conseguiu dar, lá em 1994 (a despeito do Armand de Antonio Banderas). Como esquecer do embate entre Tom Cruise e Kirsten Dunst, ainda menina, na cena em que ela questiona por quê foi transformada? É de arrepiar, não importa quanto tempo passe.
Apesar de não ter inventado os vampiros, é quase como se Anne tivesse sido a que melhor entendeu quem eles eram. A mitologia criada por ela é a que resguarda a “verdade” daquelas criaturas; sobre isso não paira absolutamente nenhuma dúvida. E pelas ruas sombrias de Paris ou de Nova Orleans, Lestat e seu séquito agora recebem outra detentora do dom da eternidade. A Royal Street por onde os filhos de Amel fitam a fragilidade da raça humana tem uma nova residente milenar.
Anne Rice passou a vida quase inteira escrevendo sobre a beleza das coisas malditas, mas, complexa que só, era uma crédula das coisas divinas e usava a morte como alegoria para o desejo incontrolável de sorver a vida, em sangue e ouro, reafirmando a mais reconfortante das máximas: a existência é transcendental. Anne não partiu. Ela transformou-se.